sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Cuidado que é segredo de justiça, ou a divulgação pública de escutas telefónicas

O direito e a justiça são bens essenciais demasiado preciosos para serem deixados apenas para os juristas. Além disso, o direito e a justiça devem traduzir um conjunto de valores transversais à sociedade, e não ser um terreno privativo só de alguns. Serve isto para introduzir uma pequena reflexão sobre o segredo de justiça.

Nestes últimos tempos a esquerda vem referindo a violação do segredo de justiça como sendo o pior defeito do funcionamento dos nossos tribunais.

Fala-se da incapacidade da justiça em condenar evidentes culpados e ressercir as vítimas mas o pior problema é a violação do segredo de justiça. Fala-se da corrupção generalizada que mina o estado português mas o pior problema é a violação do segredo de justiça. Qualquer acção demora uma eternidade ou prescreve mas o pior problema é a violação dosegredo de justiça. Há uma (quando muito) branda justiça para ricos e uma severa justiça para os pobres, incapazes de contratar bons advogados que consigam emperrar ao limite o desenrolar dos processos, mas o problema é a violação do segredo de justiça. Com frequência há decisões aberrantes dos nossos tribunais, que violam os mais elementares princípios de justiça e bom senso, mas o único mal é a violação do segredo de justiça. Há casos aberrantes na nossa magistratura, como a suspensão da classificação de um magistrado por causa de um processo no qual ele não é tido nem achado, ou procuradores que vêm à televisão fazer o papel de advogados de defesa dos suspeitos, mas o problema é a violação do segredo de justiça.

Esta postura traz à memória a "Ormetà", juramento cuja quebra é punida pela Máfia com a pena de morte. É que são, precisamente, as organizações criminosas que baseiam boa parte do seu funcionamento e sucesso no segredo e na descrição.

O segredo de justiça é fundamental no sistema judicial por várias razões, que poderiam ser bem explicadas por juristas competentes - aqui realça-se as três seguintes:

- só em segredo é que muita investigação pode ser feita com sucesso, sem que haja, por exemplo, destruição de provas.
- só em segredo é que se consegue deter prevaricadores sem que eles consigam fugir, por exemplo, para o Brasil.
- casos há, como por exemplo o crime de violação, em que o segredo serve para preservar a imagem da vítima de uma humilhação social.

No entanto, o próprio segredo tem limites. a esquerda, que só fala que andou a combater o fascismo, parece esquecida dos tribunais da PIDE, onde as pessoas eram condenadas em julgamentos arbitrários à porta fechada. Serve isto apra ilustrar o facto de que a partir de certa altura toda a actuação da justiça deve ser pública, por forma a que possa ser escrutinada e fiscalizada por todos. O livre acesso aos julgamentos e o público escrutínio da acção dos tribunais é um princípio fundamental de um estado de direito, que remonta, pelo menos, aos tempos da Revolução Francesa. É parte da tradução prática do princípio de equilíbrio e mútua fiscalização dos poderes do estado. Por isso, em especial para casos e julgamentos que prescreveram ou transitaram em julgado, não faz sentido falar em segredo de justiça. Em especial quando estão em jogo importantes interesses da sociedade. Como é exemplo o apuramento de eventual tráfico de influências realizado por personalidades do estado tão ou mais relevantes do que directores gerais. Ou o viciamento de competições desportivas que envolvem importantes actividades económicas.

Hoje voltou-se a falar da violação do segredo de justiça por causa do caso "Apito dourado". E foi muito bom esse eventual segredo ter sido violado. Afinal, o caso já transitou em julgado! Os portugueses puderam agora constatar como funciona o futebol português e o completo falhanço da justiça nacional, do estado e das instituições desportivas. Ao pé do "Apito Dourado", o "Calciocaos" foi uma brincadeira de crianças, mas a Juventus foi despromovida em poucos meses. Cá nada de relevante se passou. Brandos costumes, dirão uns. Barbaridade, dirão outros, com mais razão.

Falta agora apresentar mais escutas, para que os portugueses possam escrutinar o comportamento, por exemplo, de políticos. Muita coisa se ficaria a saber, mas duvido que alguma cabeça rolasse: é que em Portugal a falta de vergonha na cara é abundante, e ética é coisa inexistente.

No outro dia ouvi uma boa: "espero não vir a ser preso por ser honesto!". E assim vai o País, alguns meses depois de o Sr. Madoff ter apanhado 150 anos de cadeia e de o caso BPN ainda ir no adro.

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